segunda-feira, maio 29, 2006

não vejo

Agito-me, caio no chão que parece de seda
e escorro de gatas pela lisura do tecido.
Agarro-o e fico por pontas com as pontas dos dedos.

Terei de largar, eu sei.
Tarde ou cedo, é fatal!
Sinto o óleo nas mãos. Já verte… É sempre assim!

E eu que não entendo de mecânica… da mecânica das coisas!

(não vejo)

Um ponto assinala… como o ponto, o sinal
O princípio do resto
O ponto final
Para além do ponto ficam as palavras não ditas

ou as palavras mal ditas
(malditas!)
Maldigo o ponto tão próximo de mim.

(não vejo)



Que me tapem-me os olhos quando te fores
Como não quero que partas também não quero ver
Mesmo sem a anestesia que não vou ter
Eu não quero ver
Não me abras os olhos, tem piedade
Não me injectes nas pupilas a dor de te ver partir
Quero branco!
Se para mim voltares as minhas próprias garras,

vaza-me com elas os olhos
E depois vai.

Memórias de ti







Não estou nos meus melhores dias. A chuva atropela-me mesmo de baixos dos tectos dos sítios por onde vou passando. Mas também não é isso…
Tu…
Tu, que nem sabes porque não sabes nada, porque não queres saber nada, sabes quase tudo sobre mim.
És um corpo e não apenas um fluido…
Senti os teus dedos no meu cabelo, as tuas mãos na minha pele (ainda sinto), senti a tua saliva no filtro do cigarro que me acendeste e molhaste sem querer…
Vi os teus olhos, enquanto me olhavas, a entrarem visceralmente nos meus e, agora recordo, não foi a primeira vez…
Tu…
Tu que vieste assim sem avisar que vinhas…
Não tenhas pressa de partir… demora em mim, fica… ficaremos quietos por algum tempo a sorrir e em silêncio…
E quando tudo acontecer… o mundo girará ao contrário… e seremos livres

domingo, maio 28, 2006

a fotografia

A vida pregou-me a partida
E partiu-me
Em pedaços
Que eu deitei pelo chão

Joelhos dobrados
Artelhos doridos
Ancas redondas, inclinadas
Braços estendidos
As pontas dos dedos tacteiam o chão

Pupilas cegas procuram
Pedaços de mim no asfalto

Quem amei antes?
Não procuro saber…talvez ninguém
Quem me junta os pedaços?
Quem me fez assim?

Sinto a falta da perda que não tive
Se me faltasse agora o que me detém
Morreria

as três graças

Um dia três graças juntas olharam e sorriram.

quinta-feira, maio 25, 2006

"a minha obra prima"

Acrílico sobre tela (50x50)
Part Two

"a minha obra prima"

"A estalajadeira" de Goldoni (foto de cena)
Part one

A Mulher Duplicada

Photo by Henrique Toscano
A minha t-shirt está irremediavelmente molhada.
Choveu toda a tarde.
Já são hora de dormir mas não tenho sono.
A minha tia tem um cinzeiro que me agrada porque é da
Canadian Pacific Airlines.
A minha vizinha tem um cão que chora à hora de almoço.
Eu pinto telas para oferecer no natal por ser dia de festa.
As coisas não são importantes.
As pessoas importantes não são tolas e eu tenho pena.
Hoje sou um caso pouco importante.
Amanhã tudo será diferente.
A esperança acaba por matar!!!

No identify


?

a Miguel Torga e à Cerejeira - "Hora de Amor"

Photo by Henrique Toscano
"Vem.
Adormece encostada a este braço
Mais débil do que o teu.
Entrega-te despida
Nas mãos de um homem solitário

Que a maldição não deixa
Que possa nem sequer lutar por ti.
Vem,
Sem que eu te chame, ou te prometa a vida.
E sente que ninguém
No descampado deste mundo, tem
A alma mais guardada e protegida."
Miguel Torga in Poesia Completa

quarta-feira, maio 24, 2006

Inquietação



verter a língua
concubinar as palavras
em vómitos viscosos de sangue
de voz num sopro quente
carne crua por dentro da boca

investigar a noite
dentro do corpo
a noite dos dias todos
no estômago
nas veias negras
encontrar a luz que fere os olhos
por dentro
por dentro da terra quente do corpo
perscrutar o sonho

de um sonho
numa camélia viva
como a água rubra
a água das veias que se misturam
na morte
de uma camélia viva

Impressões anódinas

frio instalado
na superfície da pele
por dentro
a temperatura sobe
quente
sangue
sugo
por dentro
sanguessuga
e o frio instalado na pele
à superfície
por dentro da pele
o sangue sugado
quente
instalado
por dentro
sorvo

sexta-feira, maio 19, 2006

The Yellow left flow off... exhausted… between the black and the white

Colagem de acrílico sobre papel (200x128)

waiting roof



arranhar de novo as telhas e gastar as unhas
reconstruir o telhado para me sentar sobre ele
espreitar para fora do mundo
para fora do muro
e só restam os olhos que não vazei

chegam os ventos frios de um sul inventado
cristais de gelo espetam-me a pupila nua
vejo ainda a frágil transparência dos teus passos

bebo a transbordar o teu silêncio
quando já bebi das tuas mãos o vinho

sento-me sobre o meu telhado
e o tempo escolhe o lugar
ao meu lado o teu vazio

buraco de ozono

golpe de mestre
a ponta de aço certeira
na garganta
de lado
no tecido mais mole
misericórdia
(para não sofrer depois)

o sangue transborda
o jorro
o buraco feito pela mesma ponta de aço
olhos diáfanos
não sentem a dor
o momento de furar a pele
um segundo
espetar, enterrar, cravar
o momento anterior
a vida

os olhos postos depostos
sossegados
o peito ruborizado e viscoso
adormece o corpo mole
o momento
um segundo
tomba o corpo amolecido
e os olhos
turvos
turvam definitivamente a vida

no tempo das cerejas

my pinup hasn’t encephalitis

Carvão sobre papel (82x60)

quinta-feira, maio 18, 2006

ensáio sobre uma cegueira

Das asas assaz tuas, de um branco que fere, consigo olhar, cega.
Os olhos estão lá, no sítio.
Pelas duas asas eu vejo, cega, as diferenças que abundam
Na invenção do que está além do pano.
Num palco as evidências serão…
Aqui não…
Da cor, que não é, eu ouço os passos
Como se aparecesse devagar a escutar o que eu digo
Uma cama de minerais acesos (como diz ou dizes) digo,
Nas palavras que não escrevo
Desse teu recôndito recanto de clarabóias atentas vejo, cega,
Os dois olhos abertos que agora me parecem três
(como os pássaros à minha janela).



Para além da porta, do pano, do palco
Vejo, cega, a imagem de ti.
eras novo ainda…

nonsense do bom senso

"[...]
A propriedade privada esmagou o verdadeiro individualismo e criou um individualismo falso.[...] Na realidade, a personalidade do homem é tão complectamente absorvida pelos seus bens que a lei inglesa trata as ofensas contra a propriedade com muito mais severidade do que as ofensas contra o seu proprietário. E os bens são ainda o teste da completa cidadania.
[...]"

Oscar Wilde in A alma do homem sob o socialismo

« /282/ » os meus melhores amigos

JUAN MUÑOZ
Modern Tate


"Porque voltas sempre, Alba, quando, às vezes, não abrimos a porta, ou a fechamos na tua cara?"
"Deixa-me pensar."
Vê se arranjas, depressa, um fundamento para isto."
Vou pedir ajuda a Nietzsche, "o meu melhor amigo é o que me dá a cama mais dura."
"Alba, Nietzsche não morreu doido?"
"Morreu, mas quando escreveu aquilo estava mais lúcido do que tu ou eu jamais estaremos."

Sebastião Alba in albas

DRAMA CURTO








"[...]«Acho que todas as pessoas são mais ou menos infelizes», disse subitamente Mister DeLuxe, «mas os artistas são infelizes de outra maneira, talvez de uma maneira dramaticamente infeliz». «Isso é muito agudo, Mister DeLuxe», disse Austin com um olhar brilhante, «a isso apetece-me mesmo chamar uma definição».[...]"
Dinis Machado in O que diz Molero

...porque vais embora...sempre...



Photos by Miguel Luz

segunda-feira, maio 15, 2006

Morre-se

a vida não é grave

aguda
aguçada
afilada
amolada
amolgada
achatada

a vida é abatida de vez em quando

sem título




Dentro da pele
Por dentro da própria pele
A memória dilui-se

A tentação das coisas passadas
Passadas por mim numa linha paralela
Ausentes de mim
Diluídas por dentro da pele paralela,
Paralelas à pele
Diluídas em mim.

Misturadas na memória
As coisas passadas espreitam-me
Olham-me por dentro e de dentro de mim
Olham-me pela parte de dentro da minha pele
À espreita
Espreitando o lado de fora da pele
À espera
Esperando o lado de fora da tentação
O que ainda sobra da tentação

dor ... a dor ...a opinião da dor...


O mundo de dentro para dentro

Fora: nada!
A dor comum de dentro por dentro do corpo do mundo
De dentro da dor por dentro
Um modo pessoal de ver
A dor do mundo por dentro
A percepção do interior do corpo do interior do mundo
O mundo interior da dor
E a dor na percepção do corpo do mundo

Um círculo fechado
E fora: nada!
Expulsão de fluidos crus
Cozinhados com palavras
A dor sai em forma de poema
Umas vezes
Rasgada
Outras
Moldada
Fora: fluidos modelados de dor de impressão
A impressão de estar perto dos outros
O elo pela renúncia de estar só
A dor expulsa pela renúncia à solidão

A dor de dentro
Inabordável
Irrefutável
Incomunicável

Inopinável

A dor não passa de uma opinião talvez inopinável…

quinta-feira, maio 11, 2006

Baudelaire a.k.a. Cabaret Murderer







«Se alguma vez se definiu erotismo como relação entre o amor e morte, deveu-se isso à percepção de um sentido muito profundo da "degradação", à maneira baudelaireana, do instinto sexual. O erotismo é uma metafísica da sexualidade.»

Herberto Helder in Photomaton & Vox


...os passos em volta...



"Deitei-me no chão, e não é fácil. É preciso ter sido queimado por muitos nomes, ter esquecido e relembrado a delicadeza, o sangue, a ironia, paisagens e transmutações, as formas, as vozes. Como se pudéssemos existir sem qualquer herança, com a fortuna apenas de um tesouro criado pela solidão. Deitado na terra, respiro contra o chão vivo; e como estou com a cara muito junto ao chão, o sopro bate na terra e volta-me à cara. É ainda assim uma bela coragem."
Herberto Helder in Photomaton & Vox