domingo, dezembro 17, 2006

Uma Carta do Amor Insuportável


[...]

Ah, dêem-me um coração fiel que não pergunte quando, como e sempre - um coração como uma mão gretada de trabalhos, que no entanto dá e dá.
Dêem-me um coração fresco e sem meandros de trocas múltiplas, infecundas, facilitadadas por irrelevâncias a esquecer.
Dêem-me um coração capaz de submergir-se na surpresa.
Dêem-me um olhar que fique onde se encontra. Aquele que cega em nome do já entrevisto e prometido.
Dêem-me um coração fiel como uma pedra húmida. Um coração que fica onde jurou servir e aprender na pena e na pobreza e na razão e na desrazão.
Dêem-me um coração do lado de dentro de um corpo canhestro coberto de cicatrizes nodosas, ferido a cada dia e porém capaz de júbilo de bailar agarrando à terra cada pequenina cria, cada pequena colheita.
Dêem-me um coração como os soldados de antigamente e os novíssimos guerrilheiros, um coração espesso de crença onde o saber hesita.
[...]

Maria Velho da Costa
In Cravo. Lisboa: Moraes Eds.,1976, p.98

2 comentários:

Pedro disse...

" A aceitação da gratuidade. O milagre inútil. Mas mesmo assim um milagre. Não há pergunta sobre o para quê de uma flor que lhe retire o encantamento. O sentido do ser é o ser. E se nos calássemos? "

Vergílio Ferreira

Anónimo disse...

Oi, BULUNTÁRIA! É lindo!!
A aceitação da humildade (sentimento proveniente do conhecimento da própria fraqueza) como antídoto do amor insuportável. Porquê esperar que alguém me dê? E o quê? Acho que é no dar gratuito que vem o receber. Não vou ficar à espera que alguém me dê um coração branco, preto, azul ... Sabes: o meu coração é lindo! Não preciso de outro. Tenho é que o escutar mais vezes, porque ele percebe os outros corações. E adora chá verde.
Uma frase: não é como sempre, é como tu quiseres que seja